Vida Económica - Como tem evoluído o posicionamento da Liberty no mercado, e os resultados obtidos em comparação com a média do setor?
José António de Sousa - A Liberty Seguros iniciou o seu percurso em Portugal em 2003, com a compra da antiga Europeia ao grupo Credit Suisse / Winterthur.
Quando arrancámos em 2003 o volume de negócios era mais ou menos de 110 milhões de euros, o que representava uma quota de mercado de uns 2,8 % em Não Vida. Fechámos o exercício de 2014 com uns 244 milhões de euros de volume de negócios em Não Vida (270 milhões incluindo Vida), correspondente a um crescimento, no período considerado, superior a 130%, o que nos permitiu alcançar uma quota de mercado de 6,6 % em Não-Vida!
Quando comprámos a companhia em 2003, a situação de descalabro interno era tão grave que, além do capital necessário para a compra, foi pedida ao “board” do grupo, pelo então presidente do Liberty Mutual Group, Ted Kelly, autorização para manter em “standby” uma importância de capital adicional de dois dígitos (ou seja, bem superior a 10 milhões de euros), para o caso de ser necessário injetar capital na operação de forma emergencial.
Não só este montante nunca veio a ser necessário como conseguimos obter este crescimento sem pedir um único centavo de capital aos nossos acionistas. Ou seja, financiámos o crescimento com recursos gerados pela operação, distribuímos dividendos superiores ao que os acionistas pagaram pela companhia em 2003, e a companhia vale hoje, pelo que vejo ser pago em Portugal por operações em estado por vezes calamitoso, ou pelo menos muito complicado, umas cinco a sete vezes o montante que foi pago pelo Liberty Mutual Group pela Europeia em 2003. Desde 2003 até hoje a companhia gerou mais de 140 milhões de euros de resultados líquidos (depois de pagamento de impostos).
Não farei comparações, porque não me compete fazê-las para o exterior. Fazemo-las internamente, obviamente. Mas quem se der ao trabalho de olhar para estes resultados, e os comparar com o que aconteceu no mercado com a esmagadora maioria dos operadores ao longo destes 12 anos, não terá outra forma de descrevê-los a não ser dizendo que são extraordinários.
VE - Tendo em conta a quota de mercado em outros países, qual é o objetivo de crescimento para Portugal?
JAS - Exceptuando nos EUA, onde a Liberty é um “player” dominante (entre os três maiores grupos seguradores no mercado), e um ou outro país da América Latina, em que somos líderes de mercado (Venezuela), ou estamos em vias de o ser (Chile, Colômbia), as operações que a Liberty tem nos outros mercados asiáticos, europeus e latino-americanos ainda são pequenas em termos de quota de mercado.
Em conjunto, as companhias que conformam a divisão internacional do Liberty Mutual Group (Liberty International) são no entanto um conjunto poderoso dentro do grupo. Apesar de ser uma operação jovem (o Liberty Mutual Group criou a Liberty International em meados dos anos 90, ou seja, há uns 20 anos atrás, quando a maioria dos nossos concorrentes multinacionais já andava nestas “andanças” da internacionalização na maioria dos casos há mais de 100 anos), a Liberty International representa já 25% do faturamento global do Liberty Mutual Group, e é considerada a unidade de negócios com maior potencial de crescimento!
Em Portugal, e voltando ao que o presidente do Liberty Mutual Group então, em 2003, disse em entrevista a um semanário português logo a seguir à aquisição, gostaríamos de chegar a estar entre os três principais “players” do mercado, com uma quota de mercado superior a 10%. Sem pressas, com muito juízo e bom senso, porque chegámos aqui para ficar.
VE - A Liberty tem estado atenta a possibilidades de concentração. Avaliou a Tranquilidade, e estuda companhias como a Axa, a Açoreana e a Lusitânia. Quais são os aspetos que mais valoriza numa seguradora que pode vir a ser comprada?
JAS - Fico contente que tenha abordado esta questão, porque me vai permitir esclarecer um tema candente, o da minha entrevista recente a um jornal económico, que gerou algum “sururu” em alguns círculos do setor, por causa de uma ou outra afirmação que fiz (e que repetirei até à saciedade, porque sei muito bem o que digo, e porque o digo). Como descrevi logo no início, fizemos um trabalho fora de série a crescer organicamente, com rentabilidade, num mercado altamente problemático, e que não cresceu, aliás decresceu, nestes 12 anos. Se a memória não me falha, em 2003 o mercado Não Vida representava 3,8 mil milhões de euros de volume de negócios total. Em 2014 o mercado fechou com algo como 3,78 mil milhões, ou seja, 20 milhões menos do que há 12 anos atrás. Num mercado que decresceu, como vimos, crescemos, como referi antes, mais de 130% em Não Vida. Sempre com rentabilidade.
Os acionistas estão contentes, agradecidos, e têm um enorme respeito pelo trabalho que foi feito pela minha equipa. São acionistas pragmáticos, e têm-no vindo a demonstrar, mostrando disponibilidade para olhar para (quase) todas as possibilidades de aquisição que têm aparecido no mercado ao longo destes anos.
Estivemos muito próximos de comprar a Açoreana, em 2006, se a memória não me atraiçoa, ainda o saudoso e apreciado Comendador Horácio Roque era vivo, mas ele teve um rebate de consciência na reta final, e desistiu da venda quando os documentos finais para a compra já estavam elaborados, e tinham sido discutidos ao longo de meses. Fomos ao processo de venda da Global, uns anos mais tarde, licitámos até um determinado momento, mas chegou um ponto em que os acionistas consideraram que o ativo já não valia o montante que tinha atingido no leilão, e desistiram (e bem, como se veio a verificar). E temos estado não só atentos, mas ativos na procura de outras oportunidades para acelerar o crescimento. Gostaríamos de ter ficado com uma parte dos Seguros do Grupo Caixa, mas a venda do todo em pacote não o permitiu.
Por muito que gostem de Portugal, os nossos acionistas não estavam dispostos a investir no nosso mercado o montante envolvido. Quem comprou fê-lo com objetivos determinados, muito mais vastos e estratégicos do que aquilo que possamos tratar de adivinhar. Teriam pago o que fosse necessário para ficar com o ativo, tal como provavelmente a Anbang o faça com o Novo Banco.
Mas como para nós o crescimento só se justifica atrelado a rentabilidade, chega um momento em que ou o preço é excessivo, e difícil de justificar, ou então a operação não é interessante. Foi isso que aconteceu em relação a outros dossiers para os quais olhamos até hoje.
O caso da Tranquilidade é um caso muito especial, e um dia descreverei com detalhe o “via crucis” que vivemos na tentativa de entrada no processo de compra dessa magnífica seguradora, que eu descrevi como “obscuro” na outra entrevista, com sobradas razões para o fazer. Mas a distância aos factos ainda é curta. Um dia, a minha narrativa fará parte das resenhas que os historiadores utilizarão para escrever sobre a lamentável história do BES / GES.
Peço perdão pela longa introdução, mas era necessário, porque o tema é álgido, complexo e desperta paixões em muita gente, nem sempre pelos melhores motivos. Mas para ir já direto ao cerne da questão que me coloca, temos um enorme respeito pelo capital dos acionistas. Se fôssemos gregos, ainda acreditaríamos que o dinheiro nasce na árvore das patacas, que as dívidas não são para pagar (pelo menos na íntegra), e que podemos gastar indefinidamente o que não temos, nem o que não geramos com o nosso esforço, e que outros camaradas pagarão solidariamente as nossas despesas. Mas não, não somos gregos.
Os acionistas disponibilizam capital (entrust = confiam-nos o dinheiro) quando faz sentido, e depois exigem retorno (ROE) puro e duro (tendencialmente 12% ao ano, podendo haver excecionalmente um ou outro ano em que não se chegue, mas muito esporadicamente apenas). Portanto, aquilo que mais valorizo numa seguradora que pode vir a ser comprada é a sua complementaridade com a nossa (para não ser necessário sacrificar muitos recursos no processo de consolidação), e a qualidade da sua equipa humana.
VE - Quais são as vantagens para os clientes de um mercado segurador mais concentrado?
JAS - Se me pergunta assim de forma tão direta, eu diria que poucas. Veja-se o caso das telecomunicações, da energia e, muito em breve, possivelmente da água. Continuam a ser mercados fortemente monopolizados ou dominados por um player com força próxima da de um monopólio, pelo que o consumidor final português paga mais do que qualquer outro europeu por esses serviços.
O mercado segurador português ainda está muito atomizado, sobretudo em Não Vida. Como vimos, não cresceu, mas o número de players começou por crescer graças à livre prestação de serviços na UE. Esta atomização da oferta beneficiou por um lado o consumidor, porque os preços médios das coberturas baixaram significativamente nestes últimos 12 anos, com maior força a partir de 2008.
Com isso houve vários “players” que não aguentaram, as margens esmagaram-nos, e tiveram que vender as suas operações, e sair do mercado. Ou seja, o processo de concentração que estamos a viver hoje deve-se muito ao facto da atomização da oferta que houve, e dos benefícios que os clientes obtiveram com a correspondente baixa nos preços médios das coberturas. Baixas que foram de tal maneira irresponsáveis, nalguns casos, que levaram a que várias companhias importantes do mercado estejam há três ou mais anos consecutivos a perder dinheiro. Iremos assistir portanto ao fenómeno inverso. E os clientes não vão gostar. Baixa-se facilmente uma tarifa. O processo inverso é um “via crucis” doloroso.... Vamos ver quem aguenta. O mercado mais concentrado, no caso do mercado português, irá gerar um mercado mais sólido, mais profissionalizado, mais eficiente. No longo prazo trará benefícios para o consumidor, mais do que preços baixos não sustentados tecnicamente, que são efémeros.
Ramo automóvel a crescer VE - Em que ramos existem mais oportunidades de crescimento?
JAS - Com a retoma económica estamos a ver novamente mais automóveis a ser vendidos, ou seja, espera-se que o Ramo Automóvel volte a crescer.
Na medida em que a retoma económica seja para valer, e não cosmética, outros ramos de Não-Vida irão voltar a crescer (Acidentes de Trabalho, Incêndio, Responsabilidade Civil). E com o empenho e a sanha com que grupos de interesses obscuros têm vindo a tratar de destruir o Serviço Nacional de Saúde, veremos certamente crescer a oferta de produtos de seguros nesta área.
Com os cortes cirúrgicos que irão sendo feitos nas pensões vigentes, mas sobretudo nas perspetivas futuras de vir a ter uma, veremos também cada vez mais jovens, na medida em que o rendimento disponível aumente, a pôr de lado 100, 200 ou 300 euros por mês para preparar aquilo que os germânicos definem como a “Dritte Säule” (a terceira coluna, ou seja, investimento e poupança pessoal na preparação da reforma, sendo que as outras duas colunas são o Estado, uma coluna cada vez mais quebradiça e débil, e as empresas que, na medida em que tenham que lutar pelo melhor talento do mercado, se diferenciam precisamente pelos benefícios que dão).
VE - Que fatores fazem com que a Liberty seja considerada, ano após ano, a melhor grande empresa para trabalhar?
JAS - São tantos... Temos um complexo ecossistema dentro da companhia dificilmente replicável. Começa com a estrutura achatada, quase sem hierarquias, descomplicada, sem “doutorites” e jogos de poder castrantes, o que permite que a comunicação flua a grande velocidade do topo até ao cantinho mais recôndito da organização, quase em tempo real, e que as decisões sejam tomadas com grande celeridade.
Continua pelo leque de princípios e valores que partilhamos e vivemos quotidianamente (vivemos mesmo, o “walk the talk” é uma realidade palpável na nossa casa). Falo de trabalho em equipa, de integridade, de honestidade, de rigor, de humildade, de compromisso, de simpatia e esforço genuíno na procura da excelência de serviço aos nossos parceiros e mútuos clientes.
Falo de nunca nos esquecermos das nossas raízes, de que somos seres humanos a trabalhar para seres humanos. E também, importantíssimo, o facto de termos estabelecido uma meritocracia interna que todos reconhecem como justa em termos de atribuição de benefícios e de progressão de carreira. Diz-se assim de uma penada em meia dúzia de linhas, mas demora anos de esforço sólido e de persistência a construir.
VE - Se pudesse voltar atrás preferia ter encontrado uma oportunidade, ficando em Portugal ou continuaria a optar por uma carreira no estrangeiro?
JAS - Como dizem os americanos “with hindsight” (sabendo o que sei hoje), e podendo voltar atrás, não trocaria um segundo que fosse da minha experiência de 25 anos na Alemanha, Espanha, México, Brasil, México novamente, Suíça e Venezuela por uma vidinha recatada e tranquila aqui no mercado português.
A vida é curta. O que vi por esse mundo fora, a experiência de lidar com culturas diferentes, não como turista durante uma ou duas semanas, mas a trabalhar no duro com eles, enriqueceram-me de uma forma difícil de explicar. Há gente maravilhosa em todo o lado. As pessoas nas companhias são muito iguais, independentemente do país em que vivem. Respeitando-as, dando-lhes oportunidades justas, tratando-as bem, conseguem-se formar equipas de alta performance em qualquer país do mundo.
Tive uma vida fabulosa enquanto andei lá por fora. Mas adoro o meu país e a minha gente, com todos os defeitos que temos. E vale muito a pena lutar por melhorar o tal “sistema”. É realmente muito pouco o que nos separa, este país cheio de pequenos defeitos que somos, de um país de primeiro mundo.
“O ambiente na maioria das empresas apodrece as pessoas“ “Licenciei-me em Economia na Faculdade de Economia da Universidade do Porto em 1978. Eram anos difíceis. O FMI já nos tinha visitado recentemente, e viria pouco tempo depois novamente.
Jovem ambicioso, habituado a trabalhar desde muito cedo (comecei aos 16 anos a vender com enorme sucesso a Enciclopédia da Mulher, especializei-me em vender este produto ao segmento enfermeiras em hospitais por todo o país !), a falar quatro idiomas (alemão fluente, porque fui aluno do Colégio Alemão do Porto, francês, inglês e espanhol) além do materno, aproveitei uma oferta para ir fazer formação profissional numa seguradora multinacional alemã em Colónia.
Um ano depois, aos 24 anos, era Diretor de Resseguro Vida, Saúde e Acidentes para a Península Ibérica a partir do escritório em Madrid... E aos 28 era Diretor-Geral para a América Latina, a partir do escritório na Cidade do México.
Em nenhuma empresa portuguesa teria tido a oportunidade de crescer profissionalmente a esta velocidade, porque infelizmente os critérios para os lugares interessantes em Portugal estão longe de estar assentes no mérito puro e duro, no valor e no esforço individual. Amizades, cunhas, empurrões de amigos, dívidas de gratidão, subserviência e servilismo, lealdades mal entendidas continuam a determinar as carreiras profissionais de muitos jovens em Portugal. Por isso os portugueses, quando vão lá para fora, florescem.
Somos mesmo (exceções confirmam a regra) bons e bem preparados. E génios criativos em termos de improvisação de qualidade e que funciona e resolve problemas e situações. Quando temos de lutar pelo nosso próprio mérito e esforço, somos fabulosos, fantásticos mesmo. Infelizmente isso só funciona lá fora.
O ambiente em Portugal, na maioria das empresas, apodrece as pessoas. Por isso eu recomendo a qualquer jovem que tenha apreço por si e pelas suas qualidades, ou seja, uma boa dose de autoestima, e outra de ambição pessoal, que rompa paradigmas e faça uma de duas. Criar a sua própria empresa/negócio ou ir trabalhar lá fora uns anos, decidindo mais tarde se fica, ou se regressa. Se um dia regressa a Portugal, como eu regressei, terá uma cabeça bem mais “ventilada”, umas poupanças, uma boa série de ideias, ou então virá para ser dono e senhor de um investimento importante (como o homem da PT), ou líder de uma multinacional (como eu).
Ficar aqui a penar, a fazer estágios de três anos (ou de qualquer outra duração) não remunerados, como me dizem que há advogados a fazer, ou então a ganhar um salário que não lhes permite viver a sua vida, não é opção para ninguém. Acredite, disseram-me que aí no Porto há gente que pensa que deveriam ser os formandos a pagar a sua formação, ou seja, não têm nada que receber dinheiro para ser formados! Devem trabalhar à borla! Não entendo como no século XXI pode haver “empresários” a pensar assim.
Por outro lado, não conheço nenhum jovem das minhas relações, e são muitos, a começar pelas minhas duas filhas, uma médica na Cidade do México, outra a trabalhar em Vendas na Nestlé em Barcelona, que tenha ido lá para fora e que não arranje logo um emprego decente, remunerado adequadamente, que lhe permite fazer a sua vida e sonhar. Aqui, aos nossos jovens o “sistema” tirou-lhes aquilo que nunca deveria morrer: a capacidade de sonhar, a ambição de querer chegar mais longe.” |